Na filmografia dos dois, três títulos marcantes são “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo” (2010), de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), de Marcelo Gomes, e “O Céu de Suely” (2006), de Karim Aïnouz. Embora tenham o Nordeste como cenário e a realidade daquela região seja o fio condutor dos enredos (até porque ambos são nordestinos), o que se vê no trabalho deles é diferente do que foi feito no Cinema Novo, por diretores como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos.
A miséria e os problemas sociais também aparecem nos longas de Gomes e Aïnouz, mas de forma mais contida, distanciando-se um pouco do tom denuncista e de desespero marcante no movimento das décadas de 50 e 60. No trabalho dos dois, é possível encontrar mais facilmente elementos relacionados ao romance e às relações familiares. Há melancolia, mas há também momentos de riso, de felicidade. A situação pode ser desoladora, mas a capacidade humana de superar e buscar a própria realização nunca é subestimada. Há espaço para a sobriedade e, muitas vezes, a “fúria” de outrora é substituída pelas lutas individuais.
Os “movimentos” (o Cinema Novo e a “dobradinha” Gomes/Aïnouz) estão próximos pelo fato de se voltarem para o interior do país e buscarem retratar classes sociais mais baixas, com seus costumes, mazelas e dificuldades. Mas se distanciam a partir do olhar dos diretores sobre a mesma região geográfica e cultural. A câmera livre e solta, muito comum na filmografia dos dois cineastas contemporâneos, capta as emoções mais interiores dos personagens e os aproximam do espectador, promovendo uma identificação talvez mais intensa do que a ocorrida no movimento de 40 anos atrás.
Dessa forma, Gomes e Aïnouz trazem um frescor ao cinema nacional, que na última década ganhou o estigma – principalmente na visão estrangeira – de privilegiar uma estética da violência, em filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”. E o mais louvável é que os dois cineastas também se distanciam do outro modelo posto: o de produções que se apoiam na estrutura de patrocínio e divulgação da Globo Filmes.
Sem dúvida, a empresa da família Marinho tem investido pesado na área, mas as produções com sua chancela são, na maioria das vezes, conservadoras e continuadoras dos padrões consolidados pela linguagem televisiva. Esse traço pode ser visto tanto nas temáticas quanto nos elencos – formados, principalmente, por atores conhecidos do grande público pelo seu trabalho na televisão.
Em contraposição a todo esse sistema, Gomes e Aïnouz têm como bandeira a meta que deveria nortear o trabalho de todo e qualquer cineasta: a ousadia. Os dois, em seus filmes individuais e no que fizeram em parceria, se inspiram no próprio Cinema Novo, no Neorrealismo Italiano, na Nouvelle Vague e em procedimentos do cinema contemporâneo. Decerto, é uma miscelânea. Mas o resultado prova que mesclar diferentes linguagens e ainda conseguir dar o toque pessoal é a maneira mais autêntica de fazer arte.
É curioso notar que, justamente por proporem algo novo e descolado do sistema atual de produção cinematográfica no Brasil, Gomes e Aïnouz acabam enfrentando dificuldades em seu trabalho, inclusive dentro do próprio território nacional. Como ficam, de certo modo, à margem da produção convencional, os filmes dos dois costumam se restringir a uma faixa estreita de público.
Nos cinemas, os três filmes em questão ocuparam poucas salas e tiveram curto tempo de exibição. Somando-se o fato de que a divulgação é infinitamente menor do a de um filme, por exemplo, patrocinado pela Globo Filmes, tem-se a dimensão real do quanto a produção autoral ainda é limitada, em termos de público e faturamento. O mais comum de acontecer é as pessoas assistirem aos longas só quando eles saem em DVD.
Mesmo tendo um público relativamente pequeno – se comparado a “blockbusters” nacionais –, “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo”, “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “O Céu de Suely” são exemplos de que é possível cativar o espectador com um novo jeito de fazer cinema. Recorrendo a outros movimentos e inspirações, Marcelo Gomes e Karim Aïnouz desenvolvem um trabalho que mostra o amadurecimento da produção cinematográfica brasileira. Sorte de quem tem acesso às suas obras – e paciência para procurá-las entre as estantes da locadora, mesmo que estejam quase escondidas.